Sem surra

 

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Era uma vez, Toninho.

Toninho tinha dois filhos que, simplesmente, amavam bolinho. Ele não sabia o motivo. Nem tinha ideia. Ele não suportava bolinho e sua mulher tampouco. Coisa de gente mais velha. Sabe como é.

Seus dois filhos, sempre muito magrinhos, ficavam o dia inteiro pedindo os tais bolinhos. Sem dar paz ao Toninho, nem sequer por um minutinho.

Tamanha encheção de saco, forçou o pai a tomar uma atitude. Ele não batia nos filhos. Sem surra. Sempre. Então proibir o uso da palavra “bolinho” dentro daquela casa, foi a solução. Censurando os dois filhos de comentar sobre qualquer coisa relacionada àquele alimento exageradamente desejado.

Censura sem surra. No mundo ideal de Toninho, estava tudo certinho.

Mas é sabido pelo mundo, que esse tipo de censura nunca dá muito certo. Temos fatos históricos que confirmam. Alguns recentes. Alguns mais antigos. Sempre com o mesmo resultado.

Sendo assim, os bolinhos foram se acumulando dentro dos filhos do toninho. Não podiam mais sair. A cada bolinho preso dentro deles, menos espaço tinha. Até que os irmãos começaram a engordar. Sim. Engordar por falta de saída de bolinhos. Acontece com qualquer um.

Toninho começou a ficar preocupado, já que os filhos magrinhos, estavam gordinhos de uma hora pra outra. Mas não ligou. Estava em paz. Bolinhos nunca mais.

Mas sem muita demora, o fatídico dia chegou. Depois de meses, os dois irmãos estavam tão gordos, tão redondos, que explodiram na cara de Toninho. Era muito bolinho trancado, que na explosão, espalhou-se bolinho por toda a Terra. Do Uruguai a Vladivostok. Uma bolota de bolinho.

Estado de calamidade mundial. Os bolinhos estavam em conflito com os seres humanos. Eram dez  para cada humano. Até na China. Crise. Guerra.

Toda a humanidade estava chocada com tanto bolinho no mundo. Nunca tinham visto nada assim antes. Era muito estranho. Bolinho na rua! Bolinho nas revistinhas em quadrinhos! Bolinho até na minha novela!

Com o passar do tempo, prenderam todos os bolinhos. Foi difícil, mas a raça humana prevaleceu a essa ameaça absurda que eram bolinhos.

Todos eles foram trancados em uma grande e gelada geladeira em uma geleira na Groenlândia. Censura mundial dos bolinhos. Sucesso. Toninho viu a notícia com um sorriso de canto de boca. Boca cheia de chocolate. Mas não era de bolinho! Ai pode!

Meses se passaram. As pessoas, ao segurarem os bolinhos dentro de si, explodiram também. Óbvio. Não se pode reprimir o desejo natural por bolinhos. Mas foi tão forte essa explosão, que os bolinhos se espalharam por um raio muito maior e dominaram a Via Láctea. Dominaram a raça humana e todas as futuras raças dos planetas adjacentes.

O primeiro bolinho que chegou ao sol foi condecorado com o título de Flambadinho -Informação útil pro texto destacada em um parágrafo separado.

Rei Bolinho Primeiro foi eleito, e seu primeiro decreto foi a censura do Toninho. Que tentou se explicar, em suas últimas palavras. Dizia que só não queria que seus filhos comessem bolinho na infância. Que julgava isso assunto de família, assunto  delicado. Tinha até amigos que comiam bolo. Um saquinho preto com um aviso no bolinho talvez resolvesse. Que não tinha nada contra bolinhagem na rua. Etecétera.

Que nada. Censuraram o Toninho.

Ditadura mental

democracia

Oito da manhã. Acordei. Que dia gostoso, parece. Não abri a janela ainda. Estranho, sinto calor mas é inverno. São Paulo sendo São Paulo.

Meu nome é Amauri. Facinho de decorar. Amo política, redes sociais e cavalos. Não. Não tenho um cavalo. Tomarei café. Rápido. Tenho que ir trabalhar. De ônibus, não de cavalo. Seria bem legal. Cavalo mesmo.

Céu aberto no caminho para o trabalho, pego o celular e vou ler sobre a maravilhosa e estonteante política nacional. Roubos de um lado, loucuras de outro, manchetes sensacionalistas, verdadeiras, mentirosas, fogo, água e sal.

Após ler calmamente tudo que foi postado por todos meus amigos em todas as redes sociais, me preparo para postar também. Mas a minha preparação é diferente. Sou especialista em política. Li muito no Facebook, assisti uns tutoriais no youtube. Li o prefácio de um livro que me recomendaram.

Hoje acho que falarei mal do governo atual, do Bolsonaro. Li aqui que ele chutou homossexuais na nuca. Ouvi dizer também que o antigo presidente, o Lula, chutava pessoas negras com um chinelo de dedo. A discussão em torno desses assuntos é intensa. Melhor me preparar para opinar de forma coerente. Como meus amigos fazem. Que ciclo social especial que tenho. Nasceram todos em 2018. Dá prazer.

Citarei que o presidente maltrata minorias, mas de forma a deixar claro que o antigo presidente também não era muito bom com elas. Mas também não posso esquecer de dizer no texto que apoio negros e homossexuais. E com certeza especificar que dentre esses negros e homossexuais, há mulheres. Ao mesmo tempo tenho que parecer que acho tudo isso frescura. E eu nunca nem pensei nessas coisas. Sabe como é. Até 2017 política era underground. Agora é o papo do momento. Desflopa instagram.

Devo evitar também dizer coisas como: Mito, Lula livre, previdência, pobre, banqueiros, índios, negro, gays, mulheres, homem branco, Venezuela, Estados Unidos, ciência, economia, segurança, bandido bom, bandido ruim, cidadão de bem, cidadão mais ou menos e outras coisas. Evitar certos tópicos, faz com que a discussão suba de nível. Focando só no que a nata intelectual da internet se interessa.

Não posso me esquecer de escolher um lado. Já que todo mundo escolheu um político pra torcer, eu não posso ficar de fora. Sou estudado. Sei que torcer pra político é a coisa certa a se fazer. Tá na constituição. Torcerás para um tiozinho. Mas qual?

O Fascista? O comunista? O ladrão? O loucão? Hm, os dois lados tem qualidades excepcionais. Aliás, todos os políticos brasileiros apresentam personalidades acima da média. Debate presidencial foi algo memorável. Nunca vi tanta inteligência e bom senso em um só lugar. Estamos no caminho certo, desde 1500.

E agora? Se eu não escolher, vão me chamar de isentão. Pessoa sensata. Pessoa com opinião própria. Não posso deixar isso acontecer. Tenho que comprar um pacotinho. Vou ficar sem o que conversar com as pessoas. Que terrível. Melhor perder metade dos amigos virando cheerleader de tiozinho engravatado. Muito melhor!

Opa! O ônibus parou. Subiu uma senhora com a camisa do Lula. Vermelha. Um senhor de bengala levantou e deu uma bengalada nela. Alguém gritou algo terminado em ista lá atrás. Uma laranja saiu voando. Alguém chamou uma tal de Marielle. Vidas negras importam. Gritaria. Bengaladas e laranjadas. Nenhuma vida importa muito nesse coletivo.

Que festa! Que democracia! Que exemplo de país. Orgulho. É esse legado que vou deixar para meu filho. É disso que vou falar nas minhas redes sociais agora. Nesse exato momento vou digitar meu texto. Será épico.

Ponderando calmamente tudo o que posso dizer, sem criar um caos catastrófico, digito finalmente o post perfeito. Ficou assim:

“Bom dia meus amigos, amigas e não-amigos e não-amigas! Venho trazer a minha opinião sobre os fatos políticos da semana. Sei que muita coisa aconteceu, mas nada foi provado ainda. Mas o governo anterior e todos os outros também fizeram. Sendo assim, que se apure tudo. Ou não se apure nada, se a apuração ofender alguém. Mas também que se preocupem com os famintos na África e com as mortes das pessoas pobres nas ruas. Reforma da previdência se for boa (porque não li nada) e reforma da humanidade. Me desculpem pelo texto grande. Paz mundial.”

Por mais genial e amplamente estruturado que esse texto seja, não consegui postar. A velhinha caiu em cima de mim. Mas não quebrou o celular. A bengalada posterior, sim.

Bipolaridade

bipolaridade

Brasil. Inverno. E no inverno, muitas pessoas continuam sua vida de forma natural e corriqueira. Somente mudando a velocidade do banho. Mas a vida de Eduardo de normal não tinha nada. Eduardo tinha duas personalidades. Mais do que uma. Duas.

Durante sua vida, Dudu, como era chamado quando criança, cresceu normalmente. Mesmo sendo duas pessoas ao mesmo tempo. Isso nunca foi problema. Algumas vezes acontecia algo estranho, pessoas se incomodavam com a mudança repentina de comportamento e tal. Mas nada demais. Até com as garotas. Sucesso. Namorou bastante.

O problema começou quando ele completou 24 anos.

Nesse fatídico momento, sua segunda personalidade saiu do armário. Sim. Uma das personalidades de Dudu virou homossexual. Ou tomou coragem pra assumir. E, como desde sempre se soube,  ele era extremamente homofóbico. Hétero orgulhoso. Sabe como é.

O grande conflito em sua mente, começou quando Dudu foi se masturbar pela primeira vez depois de seu aniversário. Ele queria fazer como sempre fez. Machão. Mão naquilo e aquilo na mão. Mas sua outra metade queria algo totalmente diferente. Talvez até com creminho de rosas e laquê. Um luxo.

Dudu ao acusar o golpe,  berrou e saiu correndo. Enquanto corria, gritava:

– Aqui não, pederasta! Chispa daqui!

E depois continuava gritando:

– Saio nada, ficarei dentro de você. Pra sempre!

Dudu parou, enlouquecido. Pensou bem. Respirou fundo.

Momentos extremos pedem medidas extremas. Já dizia o pai de Dudu. O macho alfa do universo. Dudu sabia tinha que fazer o que tinha que fazer. A coisa mais acertada e inteligente que um cabra macho poderia pensar. Coisa planejada. Hétero.

Colou as nádegas com fita isolante.

E não foi só isso. Para reprimir a segunda personalidade de fazer algo a mais, Dudu também raspou a cabeça e tatuou uma caveira tocando guitarra cavalgando um cavalo negro gigante. Másculo. Homem. Não gay.

Naquela semana, pela primeira vez, ele iria com esse desafio para seu costumeiro encontro de motoqueiros. Motoqueiros Raiz Atropelando Velhinhas de Andador. Era esse o nome do clube. Ele ia toda semana. Sem falta.

Conversavam sobre motos e coisas de homem. Coisas como mijar fora do vaso e evitar usar a parte de trás do corpo pra coisas. Futebol. Não ser gay. Conversas corriqueiras. Conquistadores.

No dia, Dudu chegou no encontro andando estranho, devido ao excesso de fita isolante. Mas nada que fizesse os amigos perceberem. Todos o receberam com as costumeiras palavras de ordem.

– Dudu, o quebrador de ossos!

– Lá vem ele, Dudu, o animal!

Quase em uníssono eram os possíveis elogios a sua cabeça raspada e suas tatuagens de pessoa que só usa a parte da frente para as coisas.

Quando estavam todos reunidos, Dudu começou com o bate-papo.

– Galera, galera! Hoje é um grande dia!

– Grande dia! – Todos respondiam.

– Hoje é o dia em que vamos dividir os machos alfa dos machos normais! – gritava Dudu.

– É isso ai, que se dane tudo. Somos superiores! – gritavam todos, como em um ritual que não gay.

– Hoje ficaremos todos pelados em prova de união! Quem tá comigo? – bradava Dudu com uma mão em riste e outra na bunda, segurando a fita isolante que tinha se descolado naquele momento.

– Mas sem homossexualidade. Só na amizade! Afinal, somos o contrário de gay! – continuava ele.

Todos ficaram calados por um tempo. Olhando fixamente para Dudu. Careca. Barbudo. Tatuagens pelo corpo. Mão fixa na bunda.

Dudu suava frio e lembrava de seu pai enquanto olhava pra sua galera. Seu pai que tinha uma estátua de macho no centro da comunidade dos Motoqueiros Barbudos Barrigudos do Terror. A MBBT. Muito famosa por conter o maior nível de testosterona do bairro nos anos oitenta.

A mente dele estava em guerra: Sou macho. Futebol. Mulheres. Freddy Mercury. Modelos de biquíni. Vera verão era alta né? Foco. Academia. Motos. Tatuagem. Rena. Anderson Silva. Aloca. Porrada. Beijinho no ombro. Lâmpada na cabeça. Pabllo Vittar operou?

Mas o momento de silêncio se passou. Todos se levantaram, colocaram o punho acima da cabeça e gritaram ao mesmo tempo, enquanto tiravam suas roupas.

– Pelados! Pela amizade! Vamos de abraço coletivo! Foco, força e fé!

Nesse momento, Dudu  tinha conseguido lacrar novamente sua segunda personalidade com plástico bolha. Entrou em desespero. Mais de dez homens pelados se abraçando e indo em sua direção. Cada vez mais perto. Ele não podia acreditar. Iria virar um pederasta. Homossexual. Desvirtuado. Boiolinha. E pior, tinha descoberto que todos naquele clube também eram. Estavam mais perto. Mais perto. Já sentia o bafo de alguém na sua nuca. Estoura o plástico bolha. Pá, pá, pá.

E Dudu acorda. Na verdade, nem era Dudu. Era Duda. Toda suada. Tudo foi um sonho. Ufa. Ela era uma linda adolescente negra de classe média que tinha uma segunda personalidade misógina e racista.

Muito mais tranquilo.