Questão de opinião

Estamos no começo do ano de 2055. Um ano como todos os outros anos que o antecedem. Grande. Maior que onze meses e menor do que treze. Nada de especial. Essa é a minha opinião. Mentira. Tem doze meses mesmo.

Ontem fui na padaria e foi complicado pra variar. Digamos que pedi três pães e o atendente me deu somente dois. Questionei o motivo de eu ter ganho uma unidade a menos da minha querida massinha de trigo. Ele me disse, que pra ele, tinham três pães no saquinho e essa era a opinião dele.

Resumindo, tive que pagar por três pães e levar somente dois. Aprendi no último ano que brigar por isso não leva a nada. Explicarei abaixo.

Sempre achei isso muito estranho. Digo, nosso país é muito estranho. Comecei a pensar mais nesse assunto ano passado, quando fiz dezessete anos. Ou dezoito. É complicado. Já que minha mãe opina que é dezessete e meu pai dezoito. Meu RG tem uma interrogação no ano de nascimento. Sempre foi muito estranho.

Venho tendo esse incômodo dentro de mim já tem um tempinho. Começou quando, na escola, um professor do colegial disse que 1+1 podia ser qualquer coisa. Afinal, cada um tem uma opinião sobre a matemática. Alguns dizem que ela não existe e são dispensados das aulas. Sim.

Foi por aí que eu comecei a descobrir que a juventude de 2055 não é genial como eu pensava que era. Que eu e todos os meus amigos tirávamos nota 10 em todas as provas desde que eu me conhecia por gente. Que eu poderia ter respondido que o descobridor das Américas era uma gelatina desbotada, que eu ganharia a nota máxima. Que eu poderia simplesmente falar que não acredito em história. Estaria dispensado da aula. Era só eu justificar que era a minha opinião.

Incrível.

Foi nesse último ano que resolvi procurar estudar sobre a história do país. Já que, ao conversar com amigos de outros países na internet, eu percebia que lá fora era diferente. Eles tinham certeza das coisas e parece que uma tal de ciência era aplicada no dia a dia. Também era meio que universal nos outros países o fato de  1+1=2. Como chegaram nessa conclusão irrefutável? Fiquei pasmo com o avanço.

Foi num desses papos com estrangeiros que eu descobri que existem livros. Aqui no Brasil não tem mais, por algum motivo. Mas consegui algumas versões de livros de história de 2022 na deep web. Já que é impossível achar nada sobre o nosso passado no Google. Parece que alguém deletou tudo.

Ler é muito gostoso. Todos deveriam ler, sabia? Ainda mais sobre esse nosso passado peculiar.

Li que em 2020, uma pandemia atacou o mundo inteiro. E que o Brasil foi o último a se tratar e a se curar. Mesmo sendo um dos últimos a ser contagiado também. Incrível.

Também li que um dos motivos pra isso ter ocorrido, foi a falta de crença na tal da ciência. E que algumas pessoas negavam que o vírus sequer existia.

Outras pessoas passavam a vida inteira estudando e aprimorando o conhecimento nas áreas científicas. Mas eram rapidamente destruídas por pessoas aleatórias dando opiniões na internet. Parece que o @joãozinho342745 sabia do que falava.

Fui atrás de alguns livros que explicam o que era ciência de forma mais profunda. Foi mais difícil ainda de achar. Tive que pagar caro pelo acesso a esse material sensível. Parece que o governo tem medo desse conteúdo. Dizem que um ministro um dia foi ler e a cabeça explodiu, porque tinha muitas letras e poucos desenhos.

Li. Reli. Li novamente pensei. Concluí algumas coisas.

Entendi tudo. Ou quase tudo. Afinal, ciência é difícil. Atirar nos outros é fácil. Deve ser por isso que aboliram um e liberaram porte de outro. Mas deu pra entender mais ou menos o que aconteceu.

Resumindo, no Brasil, as pessoas estúpidas venceram. Sim, os burros. Aquela galerinha que reprovaria no teste do pezinho se fizesse novamente. Eles eram maioria há uns 30 e poucos anos atrás e dominaram o país. Com seus políticos igualmente idiotas.

Não somos uma pátria temida, como nosso exército nos diz todos os dias na televisão às 18:00. Somos uma piada internacional. Ninguém conversa conosco por medo de nossa estupidez ser contagiosa. Temos um potencial pandêmico.

Cada brasileiro que pisa em outro país, faz a média de inteligência daquele local cair cinquenta por cento instantaneamente.  Por isso somos proibidos de viajar. Já que na opinião do nosso governo, aviões são perigosos e ninguém entende como eles voam. 

Bom. Um lugar onde o céu pode ser vermelho e a água pode ser sólida, dependendo de quem opina, não pode ser respeitado. Eu entendo.

Mas será que quantas pessoas sabem disso por aqui? Será que estou sozinho? Será que vou ser morto se sair gritando na rua que o céu é azul e que números existem?

Preciso deixar guardado aqui pra posteridade. Talvez se eu escrevesse tudo de forma calma e ponderada, desse certo. Como a galera que estudava antigamente fazia.  Eu estava pensando em postar nas redes sociais e tentar começar a educar o país do zero.

Mas hoje mais cedo eu contei tudo isso para meus pais. Eles riram de mim e fizeram sinal de arminha com as mãos. Também me chamaram de comunista e vão me mandar pra China. Para eu ver o que é bom. Já compraram a passagem pra depois de amanhã.

Há uma hora atrás, fui ler sobre a China. Descobri que em 2049, o país se transformou na maior economia do mundo. Arrumou um jeito de acabar com a poluição nas grandes cidades e acabou com a desigualdade social. Investe pesado em tecnologia e ciência. Deletaram a palavra opinião (观点) do vocabulário e o Brasil do mapa nas escolas.

Pensando bem, educar o brasileiro talvez não vai rolar. Preguiça. 

再见.

De volta para o passado

cronica portal

Numa conversa de bar, Paulo ouviu de algum amigo mais-do-que-bêbado, sobre a existência de um portal que voltava ao passado.

Sim. Uma porta misteriosa que iria permitir que quem a trespassasse, voltasse para algum tempo atrás e pudesse fazer o que a mente escolhesse. Paulo, que estava tão bêbado quanto o amigo, achou a ideia maravilhosa e colocou na cabeça que no dia seguinte sairia a procura. Portal esse que, segundo o amigo, ficava no meio da floresta amazônica. Conveniente.

Falou com sua mulher que, claramente, foi veemente contra a viagem. Já que eles moravam em Belo Horizonte, ele perderia dias de trabalho e deixaria esposa e filho sozinhos.

– É perigoso – disse ela.

– Sei me cuidar – disse ele.

Depois de muita discussão nesse tom acalorado, ele ganhou. Saiu de casa no dia seguinte, às 5 da manhã, para procurar o tão sonhado portal. A porta que levaria Paulo para o passado. Para tempos que já estavam somente na memória dele e de todos os outros. Reviveria e respiraria o ar que já havia respirado. Emoção. Tremedeira.

Chegando lá, pediu indicações para moradores das cidades pequenas ao redor da floresta. Ninguém sabia de muita coisa. Somente um senhor de 115 anos de idade, disse lembrar a localidade exata. Disse que ia contar em detalhes, mas cinco segundo depois esqueceu onde estava, falou que era o Batman e foi levado para o quarto, para tomar remédios.

Paulo não desistiu. Entrou na floresta sozinho, disposto a achar por conta própria a grande entrada. O portal. Era algo muito valioso para se perder assim, no meio do nada. Se você considerar milhares de árvores como nada.

Bom, passaram-se muitos meses. Paulo tinha enfrentado gnomos assassinos, índios possuídos pelo demônio, lagartos gigantes que pareciam dragões e macacos pequenos que pareciam carneiros. Estava exausto, cansado e muito mais magro. Tinha perdido um braço, todos os dentes e uma orelha. Tinha esquecido como falar português. Só conseguia fazer um barulhos estranho com a boca.

Apesar disso tudo, aprendeu a sobreviver na selva e estava começando a gostar da ideia. Mas lembrou da mulher, filho e do emprego. Estavam lá sem dinheiro há muito tempo. Talvez ela já tivesse achado outro. Em breve já faria um ano que estava na procura. Mas isso não era preocupante, pensou ele. E disse em voz alta para confirmar:

– Ahn pruu raaaa tututu gaaaahhs puf papa uuu.

Que na mente dele, soava algo como voltar no tempo com o portal e recuperar tudo que perdeu. Até as calças, que já lhe faltavam.

Quando completou um ano de floresta, Paulo, que já tinha perdido até um dos pés, saltitando, encontrou o local. Um ano. Finalmente.

Estava em uma clareira, no coração da floresta amazônica. Um portal de cristal, no meio do nada, com um homem ao lado, de chapéu branco e um cajado na mão. Tudo brilhava muito e Paulo teve a certeza de que ali era o local.

Ao se aproximar, o guardião da porta falou num tom que daria pra ouvir do outro lado da floresta:

– Grande viajante, a porta que leva ao passado está aberta. Apresse-se e entre!

E tudo brilhou. O portal se abriu.

Paulo visivelmente emocionado, com a chance de recuperar seu corpo, sua dignidade e, possivelmente sua esposa, chorou. Entrou aos prantos pela porta, correndo.

Ao passar pelo portal, chegou numa clareira e ouviu a voz:

– Grande viajante, a porta que leva ao passado está aberta. Apresse-se e entre!

E tudo brilhou. O portal se abriu.

Viajante do tempo

delorean

Vamos falar de teorias. Eu sempre curti muito teorias e é sobre uma delas que vamos falar agora. Senta aí.

Algumas pessoas acreditam que, se alguém for muito importante para o futuro da humanidade de alguma forma, receberá em algum momento da vida, uma visita de um viajante no tempo que vai querer saber tudo sobre você. Tipo um historiador.

Isso porque no futuro, as pessoas que poderão voltar para o passado, irão visitar figuras histórias importantes. Como alguém que tenha inventado a cura para uma doença gravíssima ou algum grande esportista histórico.

Resumindo, se você for importante pra humanidade no futuro, fique esperto, alguém pode vir te visitar para aprender como você vive. Ou viveu. Dependendo do ponto de vista.

E essa teoria era conhecida e aceita por Joseílton. Morador de 21 anos da parte sul da cidade do Rio de Janeiro. Tinha acabado de ler sobre a teoria ao mesmo tempo que ganhara um aumento de salário e uma mudança de cargo. Trabalhava em uma multinacional de tecnologia. Era um rapaz inspirado. Queria mudar o mundo. E tinha chances reais de conseguir.

Ele estava trabalhando em uma nova tecnologia que permitiria gerar energia de forma limpa em escala global. Estava somente no início mas, se desse certo, iria mudar a forma predatória com que o ser humano trata o planeta. Estava confiante.

E no meio de uma dessas semanas que sucederam a mudança de cargo, Joiseílton encontrou um rapaz da mesma idade dele na rua. Na verdade, o rapaz que o interpelou:

– Joseílton?

– Sou eu mesmo. Me desculpe, e você? – respondeu educadamente, como sempre.

– Ah cara, você não me conhece. Muito prazer, sou o Ronaldo.

– Muito prazer!

Nessa hora a cabeça de Joseílton estava a mil. Se sentiu muito importante. Iria mudar o mundo. Respirou fundo e continuou a conversa em tom amigável com o garoto do futuro.

Foram algumas horas. Depois de faltar ao primeiro turno do trabalho para contar tudo da sua vida ao Ronaldo, ele se despediu do amigo do futuro, temendo nunca mais o ver. Já que o viajante voltaria para seu tempo e Joseílton iria rumo ao sucesso e a mudança definitiva do mundo. Agora tinha certeza.

Depois de exatamente uma semana, Joseílton voltava do trabalho e percebeu a importância daquela visita do futuro.

Assaltaram a sua casa sequestraram toda a sua família.

Adaboa

a boa

A mata era densa. Tiros por todos os lados. Folhas vermelhas de sangue apodreciam ao redor. Medo. Pavor. Cheiro de morte. Joseph estava, semi-vivo, em no meio da primeira guerra mundial. Treinara para isso desde pequeno.

Não sabia onde estava. Foi levado as pressas para o combate. Seu amigo Paul estava ao seu lado, como sempre. Paul lhe dava munição, água, medicamentos. Mas a água chamava a atenção. Joseph atirava. Matava. Resolvia a guerra para qual lado fosse que estivesse lutando. Sofrimento. Glória.

A tensão aumentava a cada minuto naquela floresta sufocante. Dias, semanas e meses sem fim. Quando Joseph estava a ponto de explodir de loucura, a voz de Paul lhe chega aos ouvidos.

– Joseph, acorda. Já deu o seu tempo.

Estavam no ano de três mil e trinta. Paul tinha acabado de acordar Joseph, que tinha imerso em uma realidade virtual que simularia sua vida completa que culminaria como soldado na primeira guerra mundial.

Joseph se levanta da cama, retira os aparelhos e abraço Paul, como se não o visse há muito tempo. Paul, entendendo como o jogo funcionava, não ligou.

Saíram os dois da casa de Paul, depois de comer e beber algo. A bebida era deliciosa. Iriam assistir algo no cinema flutuante. Mas ao começarem a voar no carro de Joseph, algo os acerta em cheio. O carro começa a balançar e cair. Não conseguiram ver de onde veio o ataque. Iriam morrer. Joseph olha para cara de Paul, lembrando da vida virtual sofrida que teve e tudo fica escuro em segundos.

O despertador tocou. Eram sete da manhã e Joseph tinha que ir para escola. Ser um adolescente com sonhos estranhos custava muito de sua vida social. Ninguém acreditava nele. Mas tinha Paul. Sempre Paul. Seu melhor amigo da escola e do mundo. Mundo.

Joseph se arrumou, tentando esquecer os sonhos estranhos que vinha tendo. Saiu de casa e encontrou seu único amigo, sentado no ponto de ônibus o esperando. Como sempre, com um suco. Dai iriam juntos para a escola. Sem erro.

Naquele dia em especial, aprenderam sobre criogenia. Um processo muito complexo de congelamento. Mas, como sempre, no meio da explicação, Joseph descobriu que nada daquilo era real. Descobriu que tinha acabado de ser descongelado e alucinações faziam parte dos efeitos colaterais. Nem adolescente ele era. Loucura.

Quando finalmente conseguiu enxergar  a realidade, estava no ano de dois mil e cem. Conseguiu ver seu amigo Paul ser descongelado ao seu lado e passar pelo mesmo processo de alucinação. O gelo descongelado de Paul tinha uma coloração diferente. Cheiro forte. Joseph se sentiu em casa. Finalmente.

Foram devidamente tratados por anos. Puderam voltar para a sociedade perfeita que a humanidade alcançou em 2100. Ficaram meio perdidos, mas os cientistas e psicólogos prometeram que em tempo, achariam seu lugar. Era questão de paciência.

Passaram-se anos de uma vida corriqueira. Moraram juntos. Paul cozinhava e servia a mesa. Joseph só comia e resmungava. Mas estavam acostumados. Nada novo sob os quatro sóis artificiais e as cinco luas.

Um certo e comum dia, apesar do corpo de Joseph estar acostumado com toda aquela comida e bebida, ele passou mal e desmaiou na mesa de jantar. Paul ficou desesperado. Tentou chamar a ambulância, mas ninguém atendia. Levantou a cabeça de Joseph caída na mesa e deu alguns tapas na cara do amigo.

José acordou. Era 2019. São Paulo, Zona Leste. Datena na TV do bar.

– Porra Zé. Bebeu muito, acorda homem!

– Que acorda porra nenhuma, serve outra dessa boa ai, Paulão.

Paulão era amigo, mas acima de tudo era dono de bar. Precisava da grana. Respirou fundo e serviu outra daquela boa lá.

Relatividade

privada

Mesmo depois dos anos 2000, alguns famosos e antigos ditados ainda são lembrados e utilizados por muita gente. Leonardo era uma dessas pessoas.

Leonardo se encafifou com um ditado em especial por muito tempo. Um que sua mãe lhe dizia todo os dias: “O tempo é relativo. A duração do minuto depende do lado em que você está da porta do banheiro”.

Durante muitos anos, ele estudou a fundo esse famoso ditado. Testando e estudando a teoria. Em pouco tempo, percebeu que ao ficar ao lado de fora do banheiro, apertado, o tempo demorava muito a passar. E quando sentava no lado de dentro, o tempo acelerava.

Foi em um desses testes que Leo dormiu dentro do banheiro e quando acordou, estava no futuro. Mais exatamente 2060, mais de quarenta anos depois do dia em sentou ali no troninho.

Ao sair do banheiro, percebeu que sua casa estava habitada por outras pessoas, com roupas estranhas e que gritavam ao perceber sua presença. Foi embaraçoso, mas conseguiu sair da casa aos berros e empurrões e sentou-se na calçada.

Depois de uns minutos de reflexão, percebeu o que tinha acontecido. Tendo dormido dentro do banheiro, aliviado, o tempo passara mais rápido, porque estava do lado de dentro da porta. Tudo de acordo com sua teoria. Lógico. Agora era só voltar no tempo, fazendo tudo ao inverso. Com certeza.

Leonardo esperou ficar com muita vontade de urinar. Sua bexiga estava quase explodindo. Procurou um bar e pediu para o dono trancar a porta. Ficou do lado de fora, segurando a vontade de arrombar a porta e se aliviar. Sua visão foi ficando turva, a cabeça doía. Finalmente, fechou os olhos. Ao abri-los, percebeu que tinha voltado ao seu tempo. Onde, no lugar do bar, estava uma praça pública, com ele agora no centro. Claramente.

Daquele dia em diante, Leo ficou muito interessado em viagens no tempo. Mas se complicou muito para ficar proficiente no assunto. Conheceu o fim do mundo, voltou para a época de Jesus, quase morreu na primeira e terceira guerra mundial. Coisas que acontecem com todo mundo que viaja temporalmente.

Mas, no final, descobriu uma forma de sentar na privada e não ir para o futuro. Tinha dias que ele só queria sentar ali e fazer o que tinha que fazer. Então percebeu que era só ficar entediado. Porque o tempo passa mais devagar quando estamos entediados. Óbvio. E o que deixava Leonardo mais entediado? Sua avó recitando poemas dos anos 40. Lógico.

Daquele dia em diante, o descobridor da viagem no tempo, só fazia cocô com a avó recitando poemas pela porta. Qualquer coisa, era só voltar no tempo e pedir para a avó mais jovem fazer o serviço.

Gênio.