O Líder

Jogador de futebol do exército

Essa é uma crônica daquelas pontuais que costumam ir nas colunas de jornal semanal. Se você estiver lendo depois do meio de 2020, ela fará pouco sentido se você não se lembrar do contexto do começo do ano no Brasil.

 

Era uma rua normal nos anos noventa. Muitas crianças na rua, jogando bola, correndo, caindo e chorando. Gritando, pulando, caindo e chorando. E eram crianças bem diferentes. Caindo e chorando.

Fizeram, como em quase toda turma de amigos naquela época, um timinho de futebol. Um time de cinco meninos que iriam jogar contra as outras ruas do bairro. Coisa básica e corriqueira.

Quem deu a ideia e criou o time, foi o Jairzinho. Ele tinha repetido a terceira série tantas vezes que acabou tendo moral na rua. Virou o capitão do time. Era bem rico. O que ajudava.

Chamou outros quatro que julgava serem os melhores jogadores que conhecia. Mandinho, Paulo, Serginho e Damasco. Escolha puramente técnica. Dizia ele. Sem saber o que é técnica.

Mandinho era um goleador nato. Fazia gols em todos os jogos que disputavam na rua. Já Paulo era um grande passador, jogava ali na armação e tinha pinta de gênio. Serginho era brucutu, forte e um pouco desengonçado. Um bom defensor. E Damasco era muito rápido com as mãos e bom goleiro. Falava que Jesus defendia pra ele.

Jairzinho já foi marcando logo o primeiro jogo. Ele gostava de atacar também e fazia a dupla de frente com o Mandinho. Então logo no primeiro embate, ganharam de cinco a zero. Cinco gols do Mandinho. Ou Mandator, como foi apelidado.

Todos foram comemorar na adeguinha da esquina. Pagaram muitas balinhas com troco do pão pro artilheiro. Ele sorria. Apesar de só tinha feito o que treinou bastante. Nada além do básico.

Depois de algum tempo, começaram a voltar para as respectivas casas.

Ao chegarem aos portões da casa do Damasco, como sempre faziam antes de se despedir, Jairzinho, o capitão, falou:

– No próximo jogo, Mandinho vai sair do time.

Ninguém entendeu nada. O amigo tinha acabado de fazer cinco gols e iria sair? Paulo tentou argumentar:

– Mas Jairzinho, você tem certeza? Você tá na Disney? Minha empregada foi esse ano pra lá. Sei lá.

E, sem pestanejar, o capitão respondeu:

– Sim. Ele tá se achando demais, muito popular. Eu mando. Eu sou o capitão! Amanhã ele não joga. Tá ok?

Todos tiveram que acatar, já que Jairzinho era o capitão do time e dono da bola. Só ele tinha dinheiro pra comprar uniformes e tudo mais.

Logo no outro dia, as outras crianças da rua ao ouvirem o que tinha acontecido, foram reclamar direto no portão do capitão. Todos estavam com muito medo do substituto do Mandinho. Finalmente anunciado.

Era um menino chamado Osmar. Que nunca jogou futebol e tinha os dois pés tortos. Mas adorava bajular o Jairzinho o dia inteiro. Idolatrava o capitão do time. E, vendo aquela aglomeração na casa do seu capitão, falou em voz alta para todo mundo ouvir:

– Fazer gols é prejudicial ao time. Tenho uma tabela aqui provando!

E mostrou uma tabela do campeonato russo de polo aquático.

Todos o ignoraram e continuaram a pedir a permanência do Mandinho. Permanência que foi veementemente rechaçada pelo Jairzinho. Nada iria convencer ele do contrário. E se foram pro jogo do jeito que o menino rico queria.

O jogo era contra o time da rua Coroa Vênus. Time forte, imbatível até o momento. Diziam por ai que todas as outras ruas tinham medo de jogar contra eles e resolviam ficar em casa. O saldo de gols deles era grande, principalmente contra a rua da Bota.

Mas Jairzinho não ligava pra isso. Treinou futebol desde pequeno, praticamente um atleta infantil. Corajoso. Entrou de cabeça no desafio.

O jogo tinha dois tempos de trinta minutos. Nos primeiros vinte, o time da rua Coroa ganhava de vinte e sete a zero. Osmar não conseguia ficar em pé direito, não tinha coordenação.

Jairzinho então, em um ato de amor à rua e orgulho, pegou sua bola e foi pra casa. Deixando time e torcida lá, naquele massacre. Mandinho entrou no time correndo, mas já era tarde. Tarde porque haviam várias bolas além da do Jairzinho.

E todas elas dentro do gol do Damasco. Especialistas de futebol estimaram um milhão.

Pandemônio

corona virus

A Paralelolândia é uma ilha escondida no oceano Índico. Eu te falaria exatamente onde ela fica, mas como é secreta, eu não sei onde é. Mas ela costumava traçar paralelos. É o que dizem.

Na ilha moram vinte pessoas. É uma democracia e tem um presidente. Os outros dezenove são divididos entre atores, organizadores de eventos festivos, cantores, donos de igreja e um cientista. Cientista este, que no caso, era também o único médico.

Em um belo dia, acolheram um náufrago que acabara chegando lá por algum motivo do destino. O rapaz estava terrivelmente doente e precisava de cuidados médicos. Prontamente foi levado ao cientista, que descobriu que o Noroca Vírus estava vivendo dentro do recém chegado.

O cientista pediu calma para todos.

Todos saíram correndo de um lado para o outro na ilha. Gritando. Alguns chutaram o paciente. Outros queriam jogar ele no mar. Desespero. Loucura.

Todos sabiam, pela internet, que o vírus era altamente contagioso. E, segundo fontes confiáveis do Facebook, ele também matava pessoas vivas.

O presidente decretou estado de calamidade pública e aumentou a verba das igrejas e dos bares. Para o povo ter onde afogar as mágoas e rezar.

O cientista pediu para que todos lavassem as mãos e evitassem contatos físicos e aglomerações.

Era época da festa mais popular da ilha. Onde todos se reuniam no centro da pequena floresta, vestidos com fantasias aleatórias e o bumbum de um era o bumbum de outro. Sexo e loucura liberados.

O presidente incentivou a festa com mais verba. Pediu para que todos transassem sem camisinha para popular a ilha e ultrapassar o atual número de vinte e um. Recorde nacional.

O cientista pediu para que todos os infectados usassem máscaras e ficassem em suas respectivas casas, até ele achar uma vacina ou uma cura.  

O que estava difícil. O presidente havia tirado toda a verba da ciência e, no presente momento, o cientista tinha que se virar com folhas de árvore e pedras da praia.

Os infectados já eram nove. Todos andando normalmente pelas ruas de Paralelolândia, sem o menor pudor. Uma corrente no Whats App tinha circulado dizendo que era só tomar chá de boldo. Alguns resquícios do feriado ainda se via nas ruas.

Pegação e tosse. Não nessa ordem.

O cientista pediu uma cama para os pacientes mais graves.

Também pediu verba ao presidente para pagar a energia elétrica de casa, que estava gastando para deixar os pacientes assistindo televisão. E um pouco de comida.

O presidente riu.  Disse que tinha assunto mais urgentes. Como a final do campeonato de futebol do país. Onde os dois times estavam desfalcados devido ao surto de Noroca Vírus. Mas movimentaria milhões!

O cientista contraiu o vírus e foi o primeiro a morrer.

Em Paralelolândia só havia um partido. O presidente comemorou a liberação da verba extra da ciência, que foi aplicada ao fundo partidário. Cof Cof era vírgula no pronunciamento.

Essa história acima, é de dois anos atrás.

Como eu disse no começo do texto, hoje em dia, ninguém conhece esse país.

E agora sabemos o motivo.